terça-feira, 5 de junho de 2007

O improvável cinismo

É custoso, compreendo. Um ministro todo poderoso, nas vésperas de suposta ribalta, sucessor anunciado do regime - estou inspirado pelo post anterior, ao redor de Rui Ramos - desce do seu pedestal para concorrer à Câmara de Lisboa.

Primeiro choque: são meses e meses a criar uma narrativa de poder, a colocar as peças no lugar, a referir um acordo tácito entre Sócrates e Costa para partilha do poder, uma aliança na continuidade, os paralelismos com Blair e Brown (?) e depois tudo frustrado: a saída do Governo

Surgem então os mais mirabolantes argumentos: o abandono do cargo como um enjeitar do país às portas de uma Presidência Europeia e de uma época de fogos. Deus sabe como isso é terrível, qualquer dia até um Ministro se lembra de abandonar um cargo para ir para Bruxelas, ou coisa que o valha. O país não tem mais políticos qualificados?

Segue-se o desmerecer a Câmara Municipal de Lisboa, por contraponto e complemento do argumento anterior, como se a Câmara de Lisboa fosse só mais uma Câmara e não a capital; não esta capital com os problemas únicos que ela hoje tem.

E, por fim, com a previsível insídia, o argumento do poder futuro. A ideia simples e tão fácil de chegar às barbearias, aos táxis e aos cafés: se abandonou o cargo para concorrer à Câmara é por achar que com isso se vai dar melhor. A incapacidade de abandonar por um momento o cinismo e admitir a vontade do desafio é inaceitável. E, no entanto, ambas as posições são indemonstráveis.

É que se é impossível descarnar o candidato para mostrar que por dentro habita, resoluta, uma vontade de tomar as rédeas a um desafio único - pense-se apenas na situação financeira da Câmara, para não ter que ir para a urgente requalificação da Baixa, o necessário regresso ao Tejo, o caótico tráfego por resolver - é igualmente impossível demonstrar que o candidato apenas pretende o poder futuro. Ou então o cínico argumento prova demais e dá lugar às mais mirabolantes exposições. Como dizer-se que Cavaco Silva iniciou em 94 o seu tabu de olhos postos em Belém.

DF